"Você não é mesma quando viaja", ele me disse. "Põe vestido, salto alto e maquiagem, estica os cabelos, passa esmalte. Vira outra pessoa."
Pensei sobre isso... Eu deixo de ser eu?
Eu sempre usei saias e salto alto, desde a infância. Fui criada numa família evangélica, e ia pra igreja sempre bem arrumada, com roupas sociais. Gostava de tênis, mas não abria mão do salto alto; usava vestidos, sonhando com calcas jeans.
E eu cresci.
Brincava sozinha por preferência, mas raramente com bonecas. Gostava de empinar pipas, andar de bicicleta, assistir futebol. Eram os momentos que passava com meu pai, me trazem boas recordações.
E eu cresci.
Não tinha televisão em casa, passava a maior parte do meu tempo lendo em casa ou em alguma biblioteca, procurando algo novo ou fazendo pesquisas para os trabalhos da escola. Fazia resenhas de livros para a minha irmã, que não tinha tanto tempo disponível para ler quanto eu, desenhava e lia hq's emprestados, já até criei minha própria hq.
E eu cresci.
Me interessava por temas fantásticos, por mitologia e ficção. Criei um mundo ideal, que só existia na minha cabeça e pra onde eu fugia nos momentos de desespero.
E eu cresci.
Hoje, gosto de salto alto, mas não abro mão do tênis. Quase sempre uso calças, mas ainda gosto dos vestidos. Sei que existem ocasiões e lugares certos para cada escolha de roupas; e continuo a ser criança.
Hoje, brinco com alguns amigos, gosto de card games, vídeo games e rpg's, sem deixar de apreciar um bom jogo de tabuleiro.
Não acompanho mais futebol, mas não deixo o amor que tenho pelo time que torci desde a infância, pois foi uma paixão nascida dos momentos que passava no sofá com meu pai, vibrando ou sofrendo juntos. Às vezes, assisto a algum jogo com ele, ou pensando nele...
Ainda sou aquela menina.
Hoje, tenho televisão por assinatura e internet em casa, assisto a filmes e séries, raramente vou a uma biblioteca, embora eu tente montar uma para mim, visito muitas livrarias. Leio menos livros do que eu gostaria, ainda pego Hq's emprestadas. Já nao desenho há anos, pesquiso poucas coisas por simples curiosidade e mais por necessidade.
E não deixei de ser aquela garotinha.
Hoje, me interesso por temas fantásticos, por mitologia e ficção. Ainda tenho meu mundo particular, que só existe na minha cabeça, e poucas pessoas puderam ter algum acesso, mesmo por tempo limitado. É pra lá que eu fujo nos momentos de desespero. E me sinto acolhida por mim mesma e feliz.
E eu me vejo.
E eu ainda sou a mesma.
Aquela garota que era atormentada por causa do nariz de batata, tão zoada por ser magrela...
Hoje, já não tão magra assim, aprendi a usar maquiagem e a alisar os cabelos. Aqueles cabelos compridos, de que tanto me orgulhava quando mais nova, e que cortei num momento de desgosto com a vida, em um protesto silencioso. Aqueles cabelos que eu jurei deixar crescer novamente, e que novamente cortei quando conheci o Projeto Cabelegria. Esses mesmos cabelos que hoje, curtos, não conhecem mais progressiva, e continuam tingidos de vermelho, combinando com os da minha alma ruiva.
Hoje, neste exato momento vestindo jeans, camiseta preta e camisa xadrez, com meus tênis surrados nos pés, eu me olhei no espelho.
E eu me vi.
Ontem, de vestido curto e sandálias altas, olhei no espelho.
E eu me vi.
Então, meu caro, cheguei à uma conclusão: o que eu sou é o que tem dentro de mim. Meu exterior pode ou não ser um reflexo de como estou sentindo, mas não muda quem eu sou. E, se você me conhecesse tão bem como afirma, não se deixaria enganar por um sapato ou por uma pintura; veria que ainda sou uma menina assustada com o mundo, que foge quando se aproximam de repente e que, se você tiver interesse e paciência suficientes para esperar, vai se aproximar devagarinho pra ver quem você é.
E pode ser que eu fique, ou pode ser que eu vá embora.
Só dá pra saber se você tentar.
"Ainda vejo o mundo com uns olhos de criança que só quer brincar, e não tanta responsa... Mas a vida cobra sério e, realmente, não dá pra fugir..." (Lugar ao Sol - CBJR)